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Manipulação da memória e o transumanismo, uma discussão ética.

Updated: Jul 17, 2023




Frankenstein, publicado na segunda década do século XIX por Mary Shelley, trouxe as primeiras reflexões sobre o que hoje denominamos “Transumanismo”. Naquela época, o cientificismo crescente se apresentava a diversos outros artistas e filósofos que começariam a pensar a interface entre humano e máquina. No século XX e XXI, com o avanço da tecnologia, essa interface se tornou cada vez mais indistinguível. A literatura e o cinema traziam nas distopias e no gênero de ficção científica uma linha cada vez mais tênue para distinguir o humano do não humano.


Uma das primeiras referências associadas ao termo “transumanismo” foi feita pelo biólogo inglês Julian Huxley(1):


“A espécie humana pode, se ela desejar, transcender – não apenas esporadicamente, um indivíduo aqui de uma maneira, um indivíduo ali de outra maneira, mas em sua totalidade, enquanto humanidade. Nós precisamos de um nome para essa crença. Talvez transumanismo sirva: o homem continuando homem, mas transcendendo, percebendo novas possibilidades de e para sua natureza humana.” HUXLEY, 1957, tradução (1)


Julian Huxley era irmão de Aldous Huxley, autor da conhecida distopia Admirável Mundo Novo e quase profeticamente, disse:


“O maior evento do século XIX foi a revolução causada pelo inesperado largo salto empreendido pelo homem em direção a natureza inorgânica. O século XX verá outra revolução causada por outro passo à frente, mas dessa vez em direção a natureza orgânica. A revolução é capaz de ser maior ainda que a anterior, pois o que deverá ser controlado é a base de nossos pensamentos e emoções e nossa própria existência.” TURNEY, 1998, tradução(1)


Para outros pensadores mais recentes, o transumanismo “sustenta que a atual natureza humana pode ser melhorada através do uso da ciência aplicada e de outros métodos racionais, os quais podem ocasionar o aumento da expectativa de saúde, a extensão das nossas capacidades intelectuais e físicas, e nos dar maior controle sobre os nossos estados e humores mentais. HANSSEL; GRACIE, 2011, p.13, tradução de (1).


Melhorar a condição de saúde humana por meio da tecnologia já é um fato bem consolidado na medicina, no entanto uma outra situação proporcionada por este avanço tecnológico vai além de cuidar do indivíduo doente. Trata-se da possibilidade do uso destes recursos para criar um humano que vai além do humano. Neste caso, essa simbiose entre humano e tecnologia não seria para curar o enfermo, mas para potencializar o ser humano saudável. Na neurociência, a manipulação de memórias, tema que parece história de ficção científica, a cada década se aproxima da realidade.


Pesquisadores especialistas em memória recentemente tem se ocupado, além das questões clássicas como consolidação e evocação de memórias passadas, de situações como remoção e adição de memórias por meios farmacológicos ou tecnológicos, como estimulação cerebral indireta(2).


Para entender a repercussão ética de temas antes vistos apenas nas telas do cinema como no filme Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças, é preciso compreender um pouco sobre o funcionamento da memória e como já estamos vulneráveis a edição das nossas próprias lembranças por nós mesmos.

Todos os dias nossa mente produz memórias subótimas ou falhas, vamos caracterizar sete tipos de erros(3):


Os três primeiros podem ser pensados como erros de omissão, que são diferentes tipos de esquecimento. O primeiro, conhecido como transitoriedade refere-se à diminuição da acessibilidade da memória ao longo do tempo. Exemplos de transitoriedade acontecem todos os dias, por exemplo, tente-se lembrar onde você estava a essa hora há exatamente 1 ano. A transitoriedade tem um papel importante na construção de quem nós somos, na formação do “self”. Portanto, aquilo que por algum motivo não se torna transitório e aquilo que esquecemos, faz parte da formação de quem somos. O segundo é por distração, lapsos atencionais resultam em esquecimentos. O terceiro é o bloqueio, a típica situação deste caso é quando estamos com algo “na ponta da língua”, mas não nos lembramos da situação ou da palavra que queremos dizer.


Os outros três tipos de erros de memória são conhecidos genericamente como erros de recordação, que é quando a memória está presente, mas está errada. O primeiro é o de atribuição incorreta que é quando você se lembra de que algo aconteceu, mas não se lembra a fonte. Por exemplo, você ouve uma notícia na rádio e posteriormente quando evoca a memória acha que foi um amigo que lhe contou. O segundo erro de recordação é a sugestibilidade, casos em que a memória é implantada, por questionamentos ou sugestões que nos levam a crer em parte do fato ou em eventos inteiros que nunca ocorreram. O último erro deste grupo é o viés que é a tendência que nós temos de distorcer as memórias do passado, de acordo com nossas crenças e conhecimentos atuais. Por exemplo, há 10 anos um indivíduo tinha uma posição política e atualmente tem uma posição política completamente oposta. Esse indivíduo tem uma tendência a enviesar a memória de 10 anos atrás para torná-la mais próxima do que ele pensa atualmente. O último erro da memória é o da persistência, o caso de memórias indesejáveis que ficam retomando e não podem ser esquecidas, é o caso de veteranos de guerra e vítimas de abuso sexual.


Já sabemos, portanto, que o nosso sistema de memória é naturalmente falho. O limite para a tecnologia, supostamente, é um limite ético. Vejamos, existem achados antropológicos de trepanação em crânios da época dos Incas. A trepanação é um procedimento em que um orifício é feito no crânio com o objetivo de drenar líquido, possivelmente sangue, e aliviar a pressão intracraniana. Atualmente, devido à tecnologia, para saber se um indivíduo tem sangue intracraniano que mereça ser drenado não é preciso perfurar o crânio, basta realizar um exame de neuroimagem e temos essa resposta. Há milhares de anos, quando os Incas praticavam o procedimento, certamente não imaginaram tal tecnologia. A manipulação de memória já é realizada no tratamento de alguns quadros de saúde mental, como o Transtorno do Estresse Pós-traumático. Seremos capazes de imaginar possíveis tecnologias que futuramente atuarão no nosso falho sistema de memória? Isso é possível ser feito, portanto a discussão deve ser ética, a que ponto a tecnologia poderá interferir na memória de uma pessoa? Que tipo de repercussão isso pode trazer?





Pensando nisso, deveríamos nos fazer algumas perguntas(4), como:


1) A memória pode alterar a noção de quem nós somos (self)? Estudos prévios demonstram que pacientes com demência, à medida que vão perdendo a memória, possuem um menor senso de identidade e uma lembrança autobiográfica mais pobre. Certamente a seleção de memórias boas ou ruins que pudessem ser apagadas influenciariam na nossa identidade.


2) Políticas sociais e públicas são necessárias para o tema? Técnicas invasivas para apagar memórias como estimulação cerebral profunda deveriam ser usadas para prevenir a reincidência em criminosos, apesar dos riscos potenciais do procedimento? Seria ético modificar o equivalente emocional da memória de uma criança que sofre de Transtorno do Estresse Pós-traumático sem saber quais repercussões isso poderia trazer para a identidade dela?


3) Existem novas terapias que potencialmente podem interferir na memória do indivíduo, é o caso de neurocirurgias psiquiátricas para tratamento de transtornos mentais refratários como depressão. Qual a responsabilidade do médico diante disso? Como o paciente deve ser orientado sobre a possibilidade de manipulação da memória em certos procedimentos? Como deveria ser a legislação? Terapias gênicas e de células tronco podem trazer um aprimoramento cognitivo em certos indivíduos? Como isso seria disseminado? Quem teria acesso?


4) O quanto sobre as técnicas de manipulação de memória deveriam ser disseminadas para o público geral? Como a mídia se comportaria nessa situação, existiria uma tendência a supervalorizar os benefícios da manipulação da memória e minimizar os riscos?


Todos esses questionamentos são necessários, sabendo-se que é uma situação que há pouco tem abandonado a literatura e os filmes de ficção científica para se consolidar na realidade. O embrião do transumanismo nascido há mais de dois séculos da curiosidade científica de um personagem chamado Victor Frankenstein, criado pelas mãos de uma jovem escritora, acabou tomando uma complexidade inesperada que não nos permite mais esperar para ser discutido.


REFERÊNCIAS:

1. Ricardo José de Lima Teixeira. O transumanismo em Frankenstein de Mary Shelley e seus desdobramentos em Philip K. Dick e Max Berry. [Centro de Educação e Humanidades - Insituto de Letras]: Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 2019.

2. Kim K, Ekstrom AD, Tandon N. A network approach for modulating memory processes via direct and indirect brain stimulation: Toward a causal approach for the neural basis of memory. Neurobiology of Learning and Memory. outubro de 2016;134:162–77.

3. Schacter DL. The seven sins of memory: Insights from psychology and cognitive neuroscience. American Psychologist. 1999;54(3):182–203.

4. Manipulating Memories: The Ethics of Yesterday’s Science Fiction and Today’s Reality. AMA Journal of Ethics. 1o de dezembro de 2016;18(12):1225–31.




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